IMPOSTÔMETRO

domingo, 27 de março de 2011

VOCÊ VAI VER

Luis Fernando Veríssimo


Você tomará um táxi no centro da cidade. Dezessete menores maltrapilhos brigarão para segurarem a porta para você. Você atirará uma moeda de 200 cruzeiros longe, todos correrão para pegá-la e você poderá subir no táxi sem o risco de perder a carteira, pelo intercomunicador dirá ao chofer, isolado na sua cabina à prova de bala, acetileno e britadeira, o endereço da sua casa. Não é longe, mas com o jeito que está o trânsito será uma viagem de três horas. No caminho você passará pelo local do Grande Engarrafamento de 1980 e abanará, melancolicamente, para o seu último carro, abandonado entre milhares de outros, embaixo de um viaduto.
(Foi assim: um engarrafamento que começou na tardinha de uma sexta-feira e nunca mais terminou. Os proprietários ― alguns aos prantos tiveram que abandonar seus carros. A prefeitura construiu um viaduto de emergência por cima. Depois de duas ou três semanas, marginais começaram a usar os veículos para morar. Primeiro os ônibus. Depois os Galaxies, Dodges e Mavericks. No fim, os Volkswagens. A Vila Sucata (ou Jardim Lataria) se tornou famosa como um foco de criminalidade, sujeira e buzinadas extemporâneas no centro da cidade. Seus habitantes, durante muito tempo, sobreviveram com a venda de pneus, baterias e outras peças das suas moradias. Depois dedicaram-se à indústria da sublocação, alugando espaço nos veículos. “Alugamos banco no ônibus para família pequena”. “Vagas para rapaz em Passat quatro portas, entrada independente”.)
Você mora na Vila de Segurança “Forte Apache”. (Quando as imobiliárias lançaram as vilas de segurança ― áreas residenciais cercadas por muros eletrificados, com torres de metralhadoras de 50 em 50 metros ― usaram nomes pitorescos para promovê-las: “Álamo”, “Forte Apache”, “Alcazar de Toledo”, “Tróia”, etc. Foi um sucesso.) No portão principal, você precisa identificar-se, e o chofer do táxi deve deixar sua carteira de identidade com o guarda, para recebê-la quando sair. O pesado portão de aço à prova de canhão abre para deixar passar o táxi e fecha em seguida. Na frente da sua casa você introduz o dinheiro da corrida ― 1.800 cruzeiros ― num compartimento especial que só abre do lado do chofer quando fecha do lado do passageiro. A porta da sua casa tem uma fechadura de cofre, e mesmo depois de você girar a fechadura de acordo com a combinação, precisa esperar que sua mulher identifique você pelo olho-mágico e depois leve 20 minutos abrindo todas as trancas por dentro. Por precaução, você leva a mão ao revólver enquanto espera.
― Como foi o seu dia? ― perguntará ela.
― Ótimo. Fui assaltado só duas vezes no centro Não encontraram o dinheiro no salto falso do sapato nem me levaram o revólver.
― Que bom.
As Vilas de Segurança têm suas próprias escolas, supermercados e centros comerciais. Depois das dez horas ninguém pode sair na rua, sob pena de ser estraçalhado por bandos de cães policiais especialmente treinados para só pouparem médicos e mecânicos de TV, e que patrulham as vilas até o nascer-do sol.
Você janta com a família. O seu filho pergunta, pela milésima vez, como é o mundo no lado de fora dos muros. E quer saber de novo que estranho som é aquele que ele ouve todas as noites, como se fossem gemidos humanos, de milhares de pessoas, do outro lado do muro. E por que aquelas rajadas de metralhadora, todas as noites?
Você e a sua mulher se entreolham, e você explica.
― É a televisão do vizinho, meu filho.

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Obs. este conto foi escrito em 1979.
Alguma semelhança com o nosso Brasil de hj?

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